
Imagem de uma possível personagem numa rua atrás do Terminal de Ônibus da Lapa, em São Paulo
Quando acordo, se durmo, penso comigo: “quem sou eu?”; quando durmo, toda vez que acordo, sinto uma sensação ruim, algo como que meu corpo pedindo para voltar ao sonho... mas não, a vida não me deixa ser livre e preciso despertar para mais um pesadelo.
Está frio. O chão, tão duro quanto o pão que tenho comer, quando tenho, me dá um recado: “seu dia vai ser difícil, rapaz”... ao que respondo: “amigo, e qual foi o meu dia fácil?”; “Sim, é verdade, nenhum de nós dois sabe o que é um dia fácil...”; percebendo que a conversa não levaria a nada, deixo de falar com o cimento e tento me concentrar em coisas mais urgentes, como o café da manhã.
Nenhuma cesta de lixo acordou ainda, talvez por ser madrugada agora; mas uns poucos gatos pingados e cachorros vira-latas estão passando pela minha frente.
- Moço, uma ajuda pr’eu tomar uma média!
- Não, amigo, brigado, hoje não...
“Brigado”? Como assim, “brigado”? E eu lá ofereci alguma coisa? Já não possuo nada, quanto mais oferecer a alguém no meio da passarela!
- Moça, qualquer coisa pr’eu poder comer...
- ...
Pois é, essas reticências são um saco, mesmo... às vezes, como agora, úteis para expressar que eu parei de falar pra pensar um pouco e dar um tempo pra você, leitor, pensar também; mas quando elas são usadas pra expressar o famoso “vácuo”, colega, eu fico bravo...
- Ah, garotinha, por favor, um trocadinho pro pob...
- Não Melissa, vem com a mamãe, não chega perto dessa gente!
Outra tentativa frustrada... “gente”, que “gente”? Quem a madame acha que eu sou? O que ela pode saber da minha vida pra falar alguma coisa? Amigo, sinceramente, depois de quase uma página inteira acompanhando o meu pensamento, qual a sua opinião, por acaso pensas tu que eu quero viver assim? Acordar no meio da calçada, pedir esmola, comida e por misericórdia, meu senhor, você pensa mesmo que eu sou desse jeito? Melhor: você acha que alguém é desse jeito?
Menos pior que já vai dando umas seis horas... sabe qual é o mais engraçado? Eu sou uma pessoa! Sim, de carne e osso, com olhos, boca e cérebro, com pernas, braços e coração... principalmente coração...por incrível que te possa parecer, eu tenho sentimentos, eu existo! Mas mesmo assim fazem de conta que pertenço à paisagem, um boneco de enfeite muito, muito feio... e até o cachorro vira-lata do qual falei tem sorte melhor que a minha: está na terceira bolacha desde que começou a mendigar, também...
Não vou me prolongar muito, afinal, a minha história é igual ao de um CD riscado: repete, repete e repete. Ninguém presta atenção em mim – ou prestam e fazem de conta que não; inclusive algumas caras de cartazes que hoje estão de terno e gravata, discursando em nome do povo e dos miseráveis, indo para Brasília, pro Rio, pros EUA, enquanto eu, bem, nem queria saber pra onde sou mandado...
Por isso que, quando acordo, se durmo, penso comigo: “quem sou eu?”; quando durmo, toda vez que acordo, sinto uma sensação ruim, algo como que meu corpo pedindo para voltar ao sonho... mas não, a vida não me deixa ser livre e preciso despertar para mais um pesadelo.