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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Marina, um sorvete e o casamento gay

O principal tema discutido em jornais, propagandas políticas e redes sociais na última semana foi, sem sombra de dúvidas, a mudança de rumo do plano de campanha de Marina Silva à presidência. Embora ela negue que a alteração nas propostas de legalização do casamento homoafetivo e criminalização da homofobia contrarie o seu discurso “sonhático”, como ela mesma define, fato é que as lideranças mais conservadores dos partidos da “causa cristã” gostaram e já pensam em se alinhar a ela.

E tenho absoluta certeza de que muitas, se não a maioria das pessoas, arrisco-me levianamente a dizer, concordam com essa atitude. Talvez você, leitor. Mas eu quero lhe mostrar que você, assim como Marina, Pastor Everaldo, Marco Feliciano e tantos outros estão errados.

De antemão, deixo claro que não é a minha intenção neste texto fazer com que as pessoas “virem” gays e lésbicas, longe disso; mas acredito que a única saída para construirmos um bairro, uma cidade, um estado, um país mais justo, como todos tanto querem, passa necessariamente pelo respeito a todos os setores da sociedade.

Para tanto, vou debater aqui alguns dos principais argumentos dos defensores dos “valores de família” e do “cidadão de bem”. Não sou especialista em Direito ou Sociologia, mas penso que a minha atual gama de conhecimentos me permite fazer essa incursão.

1 – Está na Constituição que família é “homem-mulher”

Esse, provavelmente, é o argumento mais forte de quem é contra o casamento gay e criminalização. Afinal, se todos devem seguir a lei, por consequência a homoafetividade é proibida.

Não é bem assim. Antes de continuar, vamos analisar a seguinte afirmação:

Os valores são culturais

Eu mesmo costumo falar isso, embasado muito no livro Cultura: um conceito antropológico, um ótimo ponto de partida para quem pretende entender esse termo tão complexo. O que significa dizer que os valores são culturais?

Em suma, significa que os valores não são dogmáticos, ou seja, são questionados, combatidos, alterados e, às vezes, até retornam décadas depois sob uma nova roupagem. Significa que um valor em 1650 não é, necessariamente, válido em 2014.

E de onde vem um valor? Acho que não podemos negar que muitos dos valores hoje consolidados na sociedade como universais vieram da religião, no caso ocidental do cristianismo. Mas, ao mesmo tempo, os próprios valores cristãos foram se modificando, até porque quem define isso é o ser humano, e somos criaturas que mudam constantemente.

Se, antes, a mulher deveria ser submissa ao homem – e esse era um valor cristão antigo -, hoje, embora muitas pessoas, infelizmente, ainda acreditem nisso, o discurso mudou: cada dia elas alcançam patamares mais altos na vida. E, hoje, isso é já é um novo valor.

Voltando à Constituição: um texto escrito no final da década de 1980. Quais eram os valores nessa época? Com certeza, não os mesmos que os atuais. Hoje, 16 anos depois de entrar em prática, muito mudou: tivemos o advento da tecnologia digital/virtual, que alterou de maneira significativa a forma como nos relacionamos. Mas não só isso: ela também tenta entender quem o ser humano é, e a ciência tem conseguido chegar à conclusão de que os homossexuais não são tão “anti-naturais” como se pinta, conforme estudos americanos e ingleses demonstram.

Mas isso a Constituição não acompanhou. Está lá, parada. Ela não é um recado dos anjos, imutável; é a obra de dezenas de homens e mulheres para assegurar ao país todo condições democráticas de viver, leis mudam todos os dias. A Constituição está atrasada. E ela precisa se atualizar.

2 – E os valores da família?

Já pincelamos aqui um pouco sobre cultura e o quão frágil é o significado de “valor”, assim como “cultura” é complexo e mutável. A pergunta que eu faço aqui é: com casais homossexuais sendo formados, os valores mudam mesmo?

Vamos começar com um caso hetero: estava lendo hoje uma afirmação do pediatra francês Aldo Naouri que confirmou a percepção já antiga que eu tinha, e reproduzo aqui na íntegra. “Quando os pais se tornam pais, por vezes, recordam que há algum ressentimento em relação aos seus pais e não querem repetir, nem querem que seus filhos o sintam mais tarde”, afirma o médico.

Ou seja, independentemente de qual a sexualidade dos pais, os tais valores estão em um ciclo de alteração natural, gerado, principalmente, por fatores psicológicos que influenciam na constituição da família. Não é estranho notar, então, o surgimento de muitas casas em que as duas gerações são mais amigas do que parentes – com todos os lados positivos e negativos disso.

Concordando ou não com essa mudança, fato é que ela ocorre, e como disse, com casais heterossexuais, o que faz cair por terra esse argumento de que famílias gays fazem mal à “cultura de bem”.
“Mas e o exemplo que está sendo passado para as crianças, Caio”?

Vamos lembrar que, antes de sermos homens, mulheres, crianças, adultos, somo todos seres humanos. E existem bons e maus seres humanos, como há bons e maus pais. Os exemplos passados são basicamente os mesmos de qualquer outra estrutura familiar: relacionamento, aprendizagem, carinho, amor, cuidados com saúde, necessidade de estudos e, arrisco-me a dizer, aceitação do diferente, que é algo que falta na sociedade heterossexual hoje.

Agora, se quando você pergunta dos “valores” está se referindo aos de concepção, aí isso puxa para o próximo (e estúpido) argumento contra a união homoafetiva, que é...

3 – Mas daqui a pouco normal é ser gay!

É realmente um argumento de quem já perdeu a razão. Por uma simples questão biológica: a sobrevivência das espécies depende da reprodução, e esta só é concebida por meio de penetração na vagina. E como a espécie – não nos esqueçamos, somos todos animais – visa à sobrevivência, esse é o nosso instinto.
Outro ponto importante: não dá para “transformar” uma pessoa heterossexual em homossexual só por meio de propaganda, diferentemente do que ocorre com você ao assistir ao comercial do McDonald’s. Para gostar de uma pessoa, seja ela gay ou não, é preciso atração – e concordemos que, se não dá para obrigar uma pessoa a ser homo, o inverso é igualmente inviável.

O que vemos hoje é que tem cada vez mais gente saindo do armário e querendo apenas viver como qualquer outra pessoa. Pegar na mão de quem ama e sair à rua para tomar um sorvete ou ir ao cinema. As pessoas sentem-se, se não mais seguras, menos acanhadas com a repercussão. Algo impensável há 40 ou 50 anos, que dirá na época dos nossos avós.

Falei, no início do tópico, sobre biologia. E realmente, talvez a homossexualidade não seja natural desse ponto de vista. Mas acredito que algo mais forte que isso rege as nossas vontades, e não é à toa que o ser humano busca, sempre, ultrapassar limites e aprender a lidar com a natureza. Usar um pseudo-argumento como “não é natural” para se posicionar contra a união homoafetiva é o mesmo de comparar-se a um bife no açougue: sem complexidade, sem emoção, sem história de vida, apenas mais um pedaço de carne.

Poderia discorrer muito mais sobre o tema e ampliar aqui a abrangência, mas neste exato momento chegou a quatro páginas de texto no Word e prefiro dar uma pausa. Mas queria finalizar dizendo que temos todo o direito de concordamos ou não com a homossexualidade, assim como com qualquer outra questão. O que é proibido é restringir o direito social de um cidadão, independentemente do que ele seja, por conta dessa opinião. O respeito aos direitos – e aos deveres – é maior do que qualquer opinião. Em caso contrário, corremos o risco de criar uma sociedade segregada, rancorosa e excludente – e o mundo já deu provas, diversas vezes, de que o final de uma nação assim não é nada feliz.

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